02/02/2009
Fonte: O Globo
Para presidente do Instituto Akatu, é o momento de as pessoas repensarem os seus padrões de consumo
Osvaldo Soares
osvaldo@oglobo.com.br
Diretor-presidente do Instituto Akatu Pelo Consumo Consciente, Helio Mattar consegue enxergar uma boa notícia em tempos de tantos abalos na economia global. Para ele, a crise é uma grande chance para as pessoas mudarem seus padrões de consumo em busca de uma sociedade mais sustentável.
Algo que, segundo Mattar, terá que ser feito mais dia menos dia, seja por causa do desemprego ou da falta de crédito, seja devido ao esgotamento dos recursos naturais decorrente dos atuais patamares de produção e consumo. Para ele, vivemos na “sociedade da falta”, em que nunca estamos satisfeitos. “A gente precisaria de uma sociedade do bastante, na qual as pessoas vão consumir aquilo que basta a elas para ter bem-estar”. Nesse processo, propõe até a redução do número de horas de trabalho. Ainda segundo ele, a crise reduzirá a marcha do movimento de responsabilidade social no país, mas será mais bem enfrentada pelas empresas que já incorporaram a sustentabilidade à sua gestão.
GLOBO: Como um consumidor consciente deve fazer na crise atual? Se continuar comprando, como pediu o governo, ele ajuda a pôr o planeta em risco. Por outro lado, se diminuir o consumo, ele ajuda a reduzir a atividade econômica e a agravar a crise, que já resulta em milhares de demissões...
HELIO MATTAR: Em primeiro lugar, a gente deve ressaltar que esta crise é uma crise do consumo.
Deriva do excesso do consumo que uma grande parcela da população americana procurou fazer em cima de ativos que estavam supervalorizados.
Em outras palavras, o indivíduo tinha uma casa que valia US$ 100 mil. Ele refinanciava o imóvel, cujo valor de mercado supostamente se valorizara para US$ 150 mil ou US$ 200 mil. Um banco oferecia a ele então um financiamento tendo como colateral (garantia) a casa, ou aquela parcela do imóvel que havia se valorizado. O indivíduo recebia esse dinheiro e o usava não para investir, para gerar recursos para ele, mas para consumir. Então esta é uma crise do sobreconsumo.
O GLOBO: Por que o senhor diz que as consequências da crise também têm a ver com o sobreconsumo?
MATTAR: Vamos ver quais são os principais setores afetados. O primeiro é o automobilístico. No Brasil, houve uma queda de até 30% nas vendas do último mês (dezembro) contra o último mês do ano anterior. Nos Estados Unidos, a queda foi de 50%.
Numa sociedade em que os produtos têm uma obsolescência programada, as pessoas continuamente estão atualizando seus produtos. No momento de uma crise, obviamente elas estão com os produtos atualizados e não há obsolescência programada que dê jeito nisso.
O GLOBO: O que é a obsolescência programada?
MATTAR: Isso é uma coisa discutida cotidianamente como estratégia das empresas de produtos. Um liquidificador custa, sei lá, R$ 50, R$ 60. Ele vai durar um ano, dois anos, e acabou, você nem vai mandar consertar. Cinquenta anos atrás, meus pais mantinham um liquidificador por 30 anos, ele literalmente era um produto durável.
Custava obviamente muito mais caro, mas por 30 anos só demandava da natureza uma única vez.
O GLOBO: Como agir então na crise?
MATTAR: A pergunta que você me faz é a seguinte: como é que a gente faz para compatibilizar a questão econômica com a social e a ambiental. E a resposta é a seguinte: a crise é uma extraordinária oportunidade de as pessoas compreenderem que é possível viver de uma outra forma. É possível não viver numa sociedade em que a gente tenha uma contínua tensão do consumo e que eu caracterizo como sendo a sociedade da falta...
O GLOBO: Por quê?
MATTAR: Porque sempre estamos em falta. A gente acabou de comprar um telefone celular, já surgiu um outro e nós pensamos: puxa vida, olha que pena, comprei hoje e o novo aparelho tem aquele recurso e tal. Então é a sociedade da falta, a gente nunca está satisfeito. A gente precisaria de uma sociedade do bastante, aquela na qual as pessoas vão consumir aquilo que basta a elas para ter bemestar.
Elas vão substituir aquilo que hoje seria uma sociedade da acumulação por uma sociedade do bem-estar. O que as pessoas precisam se perguntar é: o que eu preciso para o meu bem-estar?
GLOBO: Que outras características teria essa sociedade?
MATTAR: As pessoas buscariam um sentido para as suas vidas não no consumo. O significado de viver estaria nas emoções, nos afetos, nas amizades, nas coisas que de fato compreendem o bem-estar das pessoas. E o consumo seria apenas um instrumento para o bem-estar. Essa sociedade, do ponto de vista ambiental, seria muito mais sustentável. Do ponto de vista econômico, teria muito menos risco, porque as pessoas se endividariam menos. A crise pode mostrar às pessoas que consumir, consumir, consumir pode não ser uma maneira de viver. Em vez de ficarem chateadas por causa da crise, aproveitem para se perguntar do que realmente precisam. E aproveitem para usar o seu tempo, que aliás é precioso,para fazer coisas que não tenham custo.
Para fazer um passeio pelo parque, para estar com os amigos, para fazer um roteiro cultural, visitar um museu. Para fazer coisas que as alimentem emocionalmente e tenham baixa despesa.
O GLOBO: O senhor disse, em outra entrevista, que as pessoas precisam repensar o seu estilo de vida, para consumir menos e gerar menos lixo. No caso do celular, por exemplo, o senhor disse que na fabricação de um aparelho são gastos entre dez e 20 vezes o peso dele em recursos naturais. No caso do automóvel, duas vezes. Olhando por esse lado, a crise é uma boa notícia para o meio ambiente?
MATTAR: Desse ponto de vista, a crise seria uma ótima notícia para o meio ambiente, se as pessoas e os governos raciocinassem sobre o atual modelo de produção e consumo. Mas acaba sendo má notícia, porque as pessoas morrem de medo do desemprego que vai ser criado. Agora, a crise é ainda uma oportunidade para se pensar se a gente não deveria reduzir a carga de trabalho. Se a gente não deveria pensar num processo em que se redistribuísse renda, reduzindo a carga de trabalho e incluindo no mercado mais pessoas. Mas isso só é possível se as pessoas se derem conta de que consumo não é igual a felicidade.
O GLOBO: Qual a diferença, na prática, de uma redução do consumo provocada pela crise e uma causada por um novo estilo de vida?
MATTAR: A diferença é que, na crise, dado que as pessoas não se dão conta do sofrimento que estão vivendo na sociedade da falta, elas vão achar que só há coisas ruins. Já se elas fizessem uma mudança no seu modelo de vida e nos seus valores, iam se dirigir a isso com alegria, iam dizer: puxa, esta é uma oportunidade de eu trabalhar menos, de estar mais em contato com os amigos, de me dedicar ao meu desenvolvimento espiritual, para ter uma vida mais plena do que esta em que eu trabalho, trabalho, trabalho, me endivido, me endivido, me endivido, consumo, consumo, consumo, tudo isso para poder trabalhar, trabalhar, trabalhar mais, e aí não vai ter jeito.
O GLOBO: Quais serão os principais reflexos da crise no movimento de responsabilidade social empresarial no Brasil?
MATTAR: A gente tem que olhar pelo menos três grupos no mercado. Tem o das melhores empresas, que já incorporaram a cultura da sustentabilidade aos seus negócios. Nessas, imagino que a mudança não será pronunciada. O segundo é daquelas que ainda fazem ações de sustentabilidade de maneira muito fragmentada, onde a sustentabilidade não se tornou ainda uma cultura. Nessas, eu imagino que haverá um maior efeito. A evolução para uma cultura de sustentabilidade será mais lenta, porque os esforços vão estar voltados para a sobrevivência. Depois há um terceiro grupo de empresas, sem preocupação efetiva com cultura de sustentabilidade e responsabilidade socioambiental.
Essas vão continuar operando como sempre. Para o movimento como um todo, talvez diminua um pouco a velocidade na qual a ação de sustentabilidade vai se dar. Mas não nas melhores empresas. E essas é que são importantes, porque puxam o mercado.
O GLOBO: Elas estariam então mais bem aparelhadas para enfrentar a crise?
MATTAR: Não tenho dúvida. As empresas com uma cultura de sustentabilidade mais consolidada têm um nível de participação dos funcionários muito maior. Há elementos que fazem a ligação, servem de fio condutor entre as várias pessoas para que a empresa funcione como ela funciona. E isso num momento de crise torna a empresa, como se diz em física, mais resiliente. O que quer dizer isso? Um organismo mais interligado, em vez de fragmentado, quando toma uma pancada a absorve e volta à posição original. É isso que ocorre com as empresas em que uma gestão sustentável já se colocou na prática. A empresa tem mais resiliência porque os seus funcionários, como um todo, têm uma visão comum.
"A crise pode mostrar às pessoas que consumir, consumir, consumir pode não ser uma maneira de viver.
Em vez de ficarem chateadas por causa da crise, aproveitem para se perguntar do que realmente precisam"
Helio Mattar, presidente do Akatu
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